Alinhado ao governo durante o mandato de Jair Bolsonaro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) tem acumulado divergências com a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva e mantém uma relação estritamente protocolar com o Ministério da Saúde. Entre os temas que alimentaram os atritos estão a obrigatoriedade da vacinação de crianças contra Covid-19, a composição de comissões consultivas ligadas à pasta e procedimentos previstos no Sistema Único de Saúde (SUS) sobre aborto legal.
Um dos episódios mais recentes ocorreu no início do mês, após o CFM publicar resolução proibindo um procedimento de aborto legal em estágio avançado, pouco mais de um mês após uma nota técnica do Ministério da Saúde reforçar a legitimidade da interrupção legal da gravidez após 22 semanas de gestação.
A medida foi tomada pelo conselho mesmo após a orientação da pasta sobre aborto ser suspensa pela ministra da Saúde, Nísia Trindade, sob o argumento de não ter passado por todas as “esferas necessárias”.
Integrantes do Ministério da Saúde consideram que o mal-estar com o CFM começou logo no começo da terceira gestão de Lula, em abril do ano passado, quando a pasta acusou a autarquia, responsável por fiscalizar e criar normas na prática médica do país, de “inércia” e falta de resposta ao movimento antivacina que crescia entre os médicos.
Na ocasião, o diretor do Programa Nacional de Imunizações (PNI) do ministério, Éder Gatti, afirmou que a pasta esperava que o CFM revisse a postura.
— Lamentamos muito a inércia do Conselho Federal de Medicina diante de profissionais médicos que disseminam mentiras, que fazem exploração econômica dessa situação. E esperamos que o CFM reveja a sua postura — disse na época.
Nos bastidores, as críticas do ministério não foram bem vistas por integrantes da autarquia, que reforçam que a entidade possui autonomia própria e exerce os papéis a ela destinados.
Procurado, o CFM afirma, em nota, que “age como instância de defesa dos interesses da população brasileira, em especial no que se refere à execução das políticas públicas de saúde”. “Neste sentido, tem mantido sua atuação de forma independente, isenta e autônoma”, diz.
O Ministério da Saúde disse em nota que preza pelo diálogo e articulação com instituições parceiras no desenvolvimento de suas ações. “A pasta dialoga com as entidades médicas, incluindo o CFM, sobre diversos temas, como a questão da dengue, para a definição de estratégias comuns e para a orientação dos médicos em relação ao manejo clínico adequado”, afirma o órgão.
A pasta também citou iniciativas com participação do CFM, como o Programa de Formação de Recursos Humanos em Saúde Brasil-Angola. Em 2023, o Ministério da Saúde recebeu o órgão em quatro ocasiões, afirma o ministério.
Pedidos da categoria
Conselheiro federal pelo estado do Rio de Janeiro e ex-secretário de Atenção Primária à Saúde no governo Bolsonaro, o médico Raphael Câmara diz que a atual gestão do Ministério da Saúde “não trabalha em prol da medicina” e que o CFM atua para atender aos pedidos da categoria.
— O Ministério da Saúde dialoga pouco com a gente, sim. E eu não vejo nenhuma disposição deles em melhorar isso. Há muita insatisfação na categoria médica com essa gestão — afirmou.
Conselheiros federais ainda reclamam que seus apontamentos não são considerados em reuniões deliberativas com o ministério. A última crítica pública do CFM sobre falta de diálogo foi publicada na sexta-feira, em que o órgão reclama de decreto que define nova composição para a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), responsável pela supervisão dos programas de residência médica no país.
No texto, o CFM define o decreto como “uma nova ameaça para a medicina brasileira” e uma “manobra conduzida sem diálogo e de modo unilateral”. O motivo é a redução de dois para um o número de representantes de cada entidade médica no CNRM. Agora, o grupo será constituído por três representantes do Ministério da Educação e três do Ministério da Saúde, além de representantes da Ebserh e de entidades médicas.
“A CNRM passou a contar com o dobro de representantes dos interesses do Palácio do Planalto”, aponta o CFM.
Pesquisa
Em janeiro deste ano, outro movimento do CFM gerou críticas por entidades médicas e desagradou a cúpula do Ministério da Saúde de Lula. A autarquia lançou uma pesquisa de opinião perguntando aos médicos se consideravam necessária a vacinação obrigatória contra a Covid-19 em crianças de 6 meses a 4 anos e 11 meses, após o governo decidir pela obrigatoriedade.
Conforme a entidade, a enquete buscava “compreender o posicionamento da classe médica” sobre a imunização da faixa etária. medida, contudo, foi vista como uma contestação à decisão do ministério.
Por vezes, as divergências entre o CFM e o ministério afetam a prestação de serviços no SUS — no início do mês, o conselho proibiu os médicos de realizarem o procedimento de assistolia fetal, sob risco de um processo por infração ética e ter o registro suspenso, mesmo que a prática não seja desestimulada pelo ministério ou seja proibida pelo Código Penal.
Assistolia fetal é o método usado pelos profissionais de saúde nos casos de abortos previstos em lei, como em estupro, principalmente no estágio avançado da gestação. A proibição foi contestada pela Justiça Federal, que suspendeu a resolução na quinta-feira alegando falta de competência do conselho “para criar restrição”.